O português oliventino no Café Portugal
O português oliventino, numa reportagem do Café Portugal:
Oliventino - As idades de um idioma à beira da extinção
Manuel, Martina, Francisco, Raquel. São histórias de vidas na raia espanhola. Oliventinos que representam diferentes gerações de falantes de um idioma à beira de um precipício, o da extinção. O oliventino, subdialecto português, falado há séculos em Olivença, é actualmente uma quase memória, agarrado às palavras dos mais velhos. Recordam tempos em que o dialecto era sinónimo de conversas soltas, em casa, nas ruas. Palavras que, entretanto, por meados do século XX, se esconderam entre paredes. Há décadas que o oliventino mingua, com redutos sobreviventes nas aldeias e com esperança nos bancos das escolas onde é reabilitado como língua estrangeira.
Café Portugal | sexta-feira, 23 de Julho de 2010
O calor oprime a meia tarde da aldeia histórica de São Bento da Contenda. Um estio na Estremadura espanhola, encostada à fronteira com Portugal, que parece impor-se como muro a qualquer ideia de frescor. Um calor que ondula os campos, pesa sobre as copas dos sobreiros espaçados, esbate os contornos da Serra de Alor. A sete quilómetros, escondido, corre um sopro de água. O rio Guadiana avolumou-se nos últimos anos com a barragem de Alqueva. «Embalse de Alqueva» na banda de cá, como é dito, aqui, no município de Olivença. Desafiar o calor estremenho de Julho não é fácil, para mais quando implica destruir o deleite cénico montado nos últimos minutos: uma esplanada corrida pela sombra, um horizonte largo, uma bebida fresca em primeiro plano e o voo dos andorinhões, único empecilho a um céu fixo em azul. Um guião onde há, porém, que encaixar uma incursão por vias de casario alvo, de portadas e janelas debruadas a faixa torrada, chaminés largas e altas; uma arquitectura urbana que desafia a associações a paisagens do outro lado da fronteira, no concelho do Alandroal. O silêncio de «siesta» reinante vê-se surpreendido pelo rebuliço de festa popular. Pau ensebado com um «jimão», ou seja, um presunto gordo lá no alto; espuma a rodos sobre um alcatrão fervente e um rodeio com touro mecânico.
Numa multidão em delírio de palavras gritadas em castelhano o objectivo é encontrar, depois de sucessivas curvas do tempo, palavras ditas e contadas em português. Nas ruas, nos cafés, nos largos da comarca de Olivença na província de Badajoz (de onde dista 22 quilómetros), feita espanhola por Tratado de 1801, ainda se ouve, hoje, o português oliventino, um subdialecto, próximo do dialecto alentejano.A pouco mais de 15 quilómetros da fronteira com Portugal calcorreando as ruas de São Bento procura-se uma «boa tarde», com retoques de Alentejo, soprada pelos naturais. Isto sob bandeiras listadas de amarelo e vermelho pendendo de janelas, numa suspensão de final de Campeonato do Mundo de Futebol. Um jogo entre Espanha e Holanda, sabemos hoje, gritado e dançado, na vitória, na pátria de Cervantes.
Quando «Pepe» era «Zé»
Hoje há esforços para preservar o oliventino e para recordar que «Pepe» já foi «Zé» e «Paco» foi «Chico». Nas escolas, o ensino do português aparece como língua estrangeira. Estudam-na, como língua obrigatória na primária (embora não conte para a nota final), 110 alunos. No ensino secundário o português também é disciplina curricular embora opcional. Por sua vez a Universidade Popular, em Olivença, tem dois cursos de português, com um total de 60 alunos. Nos bancos das escolas de Olivença acrescenta-se à língua toda a gramática de prontuário. Retira-se o deleite de escutar um gerúndio, a esticar o extremo final da palavra. Para além das escolas, nas ruas, procura-se reabilitar o oliventino como sucedeu durante todo um dia em Junho de 2010. As jornadas «Lusofonias» promovidas pela Associação Além Guadiana (criada em Março de 2008) com apoio da câmara local reabilitaram leituras de excertos de obras de autores portugueses. Trouxeram mais: no século XXI, perto de 70 artérias do «casco antiguo», encostadas à velhinha muralha do século XIII, ganharam a dupla designação e contam nomes a duas línguas: «Diaz Brito», «antiga Rua dos Oleiros»; «Cervantes», «antiga Rua da Pedra»; «Bravo Murillo», «antiga Rua dos Saboeiros», «Reys Católicos», «antiga rua D. Manuel I». Nomes desaparecidos do mapa mas que a população continuou a usar e, agora, tornados motivo de rota.
Um bilinguismo na toponímia e nas bocas e ouvidos dos mais velhos que a Associação Além Guadiana quer transpor para as brincadeiras das crianças. Hoje, poucos oliventinos com menos de 60 anos trocam um «olá, buenas» por uma «boa tarde» como a que ouvimos a Martina Antónia, septuagenária, nascida e criada em São Bento. Senta-se à soleira da porta, à margem da festa. Saia cingida às pernas esticadas. Um leque para afastar o calor. Palavras que começam por correr tímidas, que acabam por se adensar num português fluente, a exigir ouvido treinado para distinguir o pulo de fronteira: «Os meninos de agora não falam português. Antigamente era diferente. Os meus pais falavam à portuguesa, os meus irmãos e tudo. Agora, em casa, fala-se as duas coisas». Martina Antónia nunca passou a fronteira. Portugal é uma imagem construída pelas palavras de outros. O rio Guadiana uma linha de água avistada à distância.
Mais acima, na mesma rua, outra «boa tarde». Maria do Nascimento em andar desembaraçado desenrola histórias: «A minha filha de 50 anos já fala espanhol. Daí para cá todos os quatro filhos falam espanhol. Dois, andam nos autocarros em Portugal e fazem um esforço para falar português. Eu, com os meus filhos, em casa, falava sempre espanhol. Com o meu marido é diferente, falamos em português. Aprendi a língua com os meus pais».
Sabe-se da boca de Maria que um dos filhos, de 40 anos, está nos festejos. Há que correr rumo à música, mergulhar no caos de gente. Já na festa, Maria troca o seu quase alentejano, perceptível, por um castelhano de palavras apertadas, reunidas em resmas de frases rápidas. Pergunta pelo filho. Está próximo e a conversa pula de Maria para Francisco. Olhar claro, pele escura, trabalhada pelo Sol. «Falo português, mais ou menos. Aprendi ouvindo português. A minha filha entende mas nunca quis falar porque nunca lhe despertou muito a atenção».
Francisco vive num limite de idade que é também uma fronteira para o estar dentro ou fora de uma língua falada na região desde o século XIII e que viria a contar uma história de progressivo esquecimento. Dois séculos, tempo suficiente para desgastar pedras, também corrói matéria mais porosa: a memória dos homens. Em Tálega, localidade 18 quilómetros a Sul de Olivença (de onde se tornou concelho autónomo em 1850), já não correm palavras em oliventino.
Recorde-se que em 1898, o linguista e filólogo português, Leite de Vasconcelos no levantamento feito na região ainda encontrou em Tálega uma localidade de fala única portuguesa.
Reguadas no oliventino
Até meados do século XX o oliventino foi língua franca para esta gente da raia espanhola. Falado em casa, nas mercearias, nas tascas, nas soleiras das portas das noites de verão, encostado ao borralho das noites de inverno. «Com a ditadura as coisas mudaram». São palavras de Ricardo Farinha, 64 anos, baixa estatura, tido e dito poeta popular, enérgico nas palavras. Conta vidas: a da avó que «morreu com 122 anos», a do pai «um comunista que fugiu sob a ditadura de Franco para o País Basco», a dele próprio e dos 37 anos que passou como emigrante no outro extremo da Península Ibérica. Ricardo voltou e, agora, é membro da Além Guadiana. Com ele enceta-se uma viagem de circum-navegação à primeira muralha de Olivença, do reinado de D. Dinis. A promessa é de visitar património português: a Igreja da Madalena, a Igreja de Santa Maria do Castelo, a Porta do Calvário e as ruas e praças de Olivença. De premeio, uma permuta de palavras portuguesas e oliventinas que viaja no tempo, mergulha no franquismo (1939-1976): «com o regime deixámos de falar o oliventino nas ruas. As escolas reprimiam. Quando nos saía uma palavra em português levávamos, da primeira vez, seis reguadas. À segunda vez, eram 12 reguadas. É claro que temíamos e deixávamos de falar. Do outro lado da fronteira havia o regime de Salazar que esqueceu completamente a cultura portuguesa em Olivença». Ricardo repete amiúde o termo «cultura», não quer falar de «política». O território torna-se movediço, entra em questões de reivindicação, a Associação Além
Guadiana detém-se exclusivamente na reivindicação dos espaços de encontro cultural, com marcas materiais e imateriais.
Uma delas, o oliventino e a sua erosão, acompanhou uma demografia de desertificação em meados do século XX. A emigração deixou poucos jovens nas aldeias. «A penetração da língua oficial [o castelhano] foi muito mais rápida e mais profunda nas localidades maiores, onde foi determinante a presença de instituições da administração e da educação, bem como o facto de serem centros de atracção para numerosa população vizinha de fala castelhana», alerta Juan Carrasco Gonzaléz no documento «Falantes de Dialectos Fronteiriços na Extremadura Espanhola no Último Século» (2001).
As três idades da língua
Batem as cartas sobre a meia dúzia de mesas. Em cada uma cinco ou seis oliventinos. Idades entre os 60 e os 90. O bar do antigo Quartel português, em Olivença, hoje transformado em Centro de Dia, enche-se. Há idades para contar boas histórias. Joaquín, 87 anos de voz já trémula mas ainda fixa no oliventino. É assim que fala com alguns dos companheiros de «cartada», embora o fervor de uma jogada menos consensual empurre as palavras para o castelhano. Joaquín emigrou para o País Basco, para depois voltar. Em Olivença trabalhou sempre no campo. Recorda tempos de ralhetes dos pais em português. Os filhos, porém, já pouco falam o oliventino. Os netos tornaram-se falantes do castelhano. Um percurso de língua semelhante ao que se encontra mais tarde em São Jorge de Alor. Cinco quilómetros de estrada tórrida desde Olivença que se faz com o fito de uma visita às chaminés de fisionomia alentejana. Depois das ruas, almoço no restaurante «Cambio de Tercio» com sabores a Estremadura espanhola, embora sem desfazer os costados alentejanos: um gaspacho forte, carnes de alguidar crepitantes de fritura, uns pezinhos de chibo de tempero intenso. Refeição a pedir um vinho tinto com corpo a acompanhar e que acaba por soltar as palavras. Ouve-se, então, oliventino e repete-se histórias de gerações já contada em Olivença. Três idades: Manuel Sanchez Hernandez, com 73 anos e um oliventino perfeito; o filho na casa dos cinquenta, com as palavras a cair para o castelhano. Uma linha familiar que termina em Maria del Mar. 16 anos encorpados, falante do castelhano.
Manuel fala suave, acompanha com gestos de mãos que sempre trabalharam na agricultura. Recorda tempos antigos, quando «passávamos muitas dificuldades mas a vida era mais bonita. Não havia tantos rancores». O ancião lembra os avós, de Borba, «onde há bom vinho. Falo português, aprendi com os meus pais. Ensino às netas, o que sei, porque não sei muito. Há algumas crianças a aprenderem. Tenho ido com muita gente da vila a Campo Maior para traduzir a conversa da banda de lá para a de cá». A conversa vira para Maria. Olhos que voam para fotografias expostas numa parede quando espicaçados pelas perguntas. Maria é «Matadora», já enfrentou os cornos das bestas nas praças de Badajoz, de Olivença. Um feito que a obriga a muitas horas de trabalho. «É muito mais difícil para uma mulher. Tem de ser muito melhor que os homens», confessa María del Mar em castelhano.
Fecha-se o bloco. Encerram as conversas. Ficam entre as notas muitas mais histórias e memórias de falantes de oliventino. A voz acanhada de Miguel Ribeiro Lopes, 83 anos, habitante de São Jorge, recordando que os mais velhos falam todos em português. Os pais ensinaram-nos. Hoje, para aprender só as escolas. Rememora-se o par de horas com as palavras de Servando Rodríguez Franco, do Turismo de Olivença. Um percurso pelas ruas da cidade estremenha. Património deixado pelos portugueses, explicado numa língua lusa irrepreensível.
Finalmente a voz cristalina de Raquel Sandes, durante 15 anos vocalista do grupo de música folk de Olivença, os Acetre (criado em 1976). Durante anos cantou em português, compreendendo as palavras, sabendo o que dizia, «praticando o sotaque», como nos disse. Hoje Raquel, aos 35 anos, aprende português em Badajoz, na escola de línguas. A vocalista deu o passo seguinte: Lança para as conversas futuras o idioma que ouviu aos avós, depois aos pais. Não sendo o oliventino de outros tempos, para Raquel é, de qualquer forma, um perpetuar de memórias linguísticas. Raquel corrobora aquilo que diz o jovem presidente da Associação Além Guadiana, Joaquín Fuentes Becerra, «Não podemos ter duas culturas se uma delas não se pode expressar através das palavras, só das pedras mudas».