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ALÉM GUADIANA

Associação Além Guadiana (língua e cultura portuguesas em Olivença): Antigo Terreiro de Santo António, 13. E-06100 OLIVENÇA (Badajoz) / alemguadiana@hotmail.com / alemguadiana.com

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Olivença, "pedaço de Portugal" no "Diário do Alentejo"

AG, 10.06.12
Olivença: O pedaço de Portugal que nos falta
 
08-06-2012 11:02:03
 



No próximo domingo assinala-se o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. O dia em que se comemora a portugalidade pelo mundo. Em Olivença, terra de Espanha que nunca deixou de ser de Portugal, não há comemorações. Mas por detrás dos edifícios históricos, dos nomes e das marcas portuguesas, é no sentir das pessoas que Portugal vai vivendo, através da língua, falada como sempre foi.

Texto Marco Monteiro Cândido Fotos José Ferrolho

 

 

No pequeno pátio das traseiras da casa, uma lona verde dá alguma frescura ao sítio, fazendo sombra. As plantas de Maria povoam o espaço, sem o encher demasiado. Em cima de uma prateleira, miniaturas de madeira esculpidas por António. Cenas da vida do campo, do trabalho no campo. Cenas que António viu e nas quais participou desde criança. Numa das paredes, duas gaiolas, cada uma com o seu canário. O amarelo é o mais feliz. Ou pelo menos assim parece, pois não para de cantar. Sentados na mesa redonda com toalha de plástico, António e Maria, ambos com 73 anos, vão conversando como sempre o fazem entre si: em português. Algo normal entre este casal, como também o é no bairro onde moram. Entre as vizinhas que se assomam à porta, na mercearia, nas casas, o português conversa-se, usa-se, vive-‑se. Apenas um pormenor: todos os que o fazem são espanhóis. De gema.

A alguns metros do bairro onde vivem António e Maria fica o centro histórico de Olivença. O sol está forte e são poucos os que passam pelo adro de Santa Maria do castelo, calcorreando a calçada portuguesa ou reparando no brasão português que está numa das paredes da muralha. Ali bem perto, a rua Entre Torres. Ou as ruas dos Poiais e das Atafonas. Mais abaixo, a rua do Poço ou a rua do Postigo. Nomes de ruas. Nomes portugueses. Nomes antigos de ruas em Olivença. Pelas marcas arquitetónicas ou pela toponímia, cujos nomes portugueses foram recuperados em 2010, o centro histórico de Olivença faz lembrar uma qualquer vila portuguesa alentejana, não fossem as típicas grades nas portas e janelas, grilhões ainda visíveis da Guerra Civil de Espanha. E o facto de ser espanhola.

Olivença está inserida na província espanhola da Extremadura, cuja capital é Mérida. Ao mesmo tempo, faz parte do Alto Alentejo. O certo é que a história oliventina escreve-se a dois tempos: o passado e o presente. Em 1801, Olivença foi anexada a Espanha através do Tratado de Badajoz, denunciado por Portugal sete anos mais tarde. Em 1817, após subscrever o Tratado de Viena, Espanha reconhece a soberania de Portugal, comprometendo-se a devolver o território anexado anos antes. O que nunca veio a acontecer. Ao longo dos últimos 200 anos muitos têm sido os argumentos defendidos, esgrimidos, espremidos como laranjas por elementos dos dois países. No entanto, se, a nível formal, Olivença for território português, no quotidiano isso já não acontece e as suas gentes são espanholas.

António Gonzalez e Maria Paulo são casados. A conversa começa com António no pátio que tem nas traseiras da sua casa. Maria junta-se um pouco mais tarde, já que dois netos estão em casa e, se não tomar conta deles, não deixam o avô falar descansado. António fica visivelmente feliz. Não por falar português, mas por falar português com portugueses. Natural de Olivença, assim como os 11 irmãos que teve, para António, falar-se em português e da língua portuguesa, é falar-se de afetos e de memórias. Mesmo que não o saiba. “ Eu falo português porque o meu pai me ensinou. O meu pai falava português, assim como a minha mãe, e eu e os meus irmãos também. Naquela altura, aqui na vila, toda a gente falava o português. E eu tenho muito respeito por isso”.

O caso de António é simbólico do que acontecia em Olivença até há uns anos. A partir da anexação, o português começou a ser considerado como a língua das pessoas do campo, com menos posses, mais popular. O castelhano, imposto, começou a ser aculturado pelas classes mais ricas, num processo que teve início no topo da hierarquia social e que depois se quis ir disseminando por toda a população oliventina. No entanto, e apesar da anexação ter acontecido em 1801, até meio do século XX a maioria das pessoas mais velhas ainda falavam o português como língua primeira. Por ser a língua do povo, de quem tinha poucos estudos e não ia à escola, foi sobrevivendo, enquanto nas escolas era ensinado o castelhano. Ainda hoje, em Olivença, entre pessoas acima dos 65 anos, o português vai subsistindo. E António é o paradigma de tudo isto: 73 anos, tendo trabalhado uma vida inteira no campo, depois de três meses na escola. “Os meus filhos entendem português, mas falam espanhol. Eu e a minha mulher é que falamos sempre em português. Gostamos e é algo da nossa geração, que os nossos pais nos ensinaram. E isso não o perderei em vida”.

Maria junta-se à conversa. Apesar de ter um sotaque diferente do marido, fala igualmente português. E lá vai explicando como acontece. “Falamos sempre em português entre os dois, à frente dos filhos e tudo. Só se estivermos com alguém que não fale é que, por respeito, falamos em espanhol entre nós”. Pai de quatro filhos e avô de cinco netos, com mais um a caminho, a infância de António foi diferente da dos seus descendentes. “A minha infância foi a falar português. Com nove anos fui trabalhar para o campo, para termos o que comer. Uma vida desgraçada”.

O escudo português aparece amiúde nas paredes. A câmara municipal, o ayuntamiento, tem a porta manuelina a emoldurar-‑lhe a entrada, um dos postais turísticos da terra. Bem perto, o pelourinho. As casas brancas, o céu azul e o calor assentam em Olivença como um manto que cobre a vila pela hora da sesta. Poucos se veem e esses estão refugiados nas frescas sombras das esplanadas dos restaurantes e cafés. O branco das casas é quase incandescente, refletor que é da luz brilhante do sol que bate. E o calor é tão sufocante, que parece ser o do Alentejo. Só ao fim da tarde a vila voltará a ganhar vida, despertando lentamente como o património cultural português está a despertar, valorizado que está a ser pela associação Além Guadiana (ver caixa). Felipe Fuentes, de 41 anos, pasteleiro de profissão mas a trabalhar atualmente na função pública, é um dos membros da associação. E também ele tem o património português bem vincado na sua vida “Nunca ouvi os meus avós a falarem espanhol. Só falavam português. Os meus pais não, mas os meus avós sim. Ainda hoje, a minha avó pensa em português”.

Felipe fala português por um sentimento de “nostalgia”, de saudades de um passado e de toda uma herança genética de séculos e séculos de portugalidade. “Cada vez que morre um velho, morre a cultura. Conheço pessoas que, na hora da morte, as últimas palavras foram em português”.



A terra de chaminés alentejanas A oito quilómetros de Olivença fica São Bento, como é conhecida a pequena aldeia. Em boa verdade, o nome oficial é San Benito de La Contienda. Mas muitos se referem a ela simplesmente pelo nome luso: São Bento. Com cerca de 500 habitantes, a aldeia tem algum movimento e uma particularidade: quase toda a população fala português, exceção quase feita aos mais novos. Quase feita, porque já vão aprendendo na escola desde pequenos, numa aprendizagem quase bilingue. E quando se diz que falam português, não é por saberem falar ou poderem falar. É porque, de facto, falam, de forma natural e inata, como uma língua oficializada pelo passar das gerações, convivendo com o castelhano.

Na rua, crianças brincam e jogam à bola. A correr, uma camisola branca do Real Madrid com o nome Ronaldo nas costas, prepara-se para marcar um golo. Ali bem perto, sentados a apanhar o fresco de fim de tarde, estão Valentim Rodriguez Pires, de 81 anos, e Zé Pires, de 75, irmãos. Naturais de São Bento, Valentim é o que melhor fala português dos dois, até porque Zé esteve muitos anos em Madrid e o seu português está mais enferrujado e com outra pronúncia. Mas Valentim tem o linguajar de um qualquer alentejano, havendo poucas diferenças, só um leve cantar adocicado de quem é, efetivamente, espanhol. “Aqui, dantes, todos falávamos à portuguesa. Agora é diferente. Em minha casa, as minhas filhas falam em espanhol e eu falo à portuguesa. Como os meus irmãos”.

De pouco cabelo no alto da cabeça, tez morena e cara sulcada pelas rugas, Valentim tem um ar bem disposto, apesar dos anos que já leva. “Ninguém estranha que eu fale assim. Os mais novos? Não. Percebem o que digo. Não falam, mas entendem”. Mesmo em frente mora Maria Rodriguez Pinto, de 70 anos. Espanhola de cepa, mas portuguesa, alentejana autêntica no falar. Natural de uma pequena aldeia de Olivença, mas poderia ter nascido em qualquer aldeia do Baixo Alentejo, tal é a perfeição do português e a pronúncia alentejana. “Sou espanhola, mas com um poucochinho de Portugal também. Sou espanhola e falo português”. Assim o disse, sem tirar nem pôr, com uma limpidez ímpar. “Tenho um bocadinho de Portugal, como é que não havia de ter, aqui na raia? A minha mãe queria que falasse em português e o meu pai em espanhol. A minha mãe, mais dominante, foi a que conseguiu. As mulheres são mais dominantes e os homens ficam sempre na retranca. Foi assim mesmo que se passou, não é nenhuma mentira, é a pura da verdade”. Maria é otimista quanto ao futuro do português na sua terra. “Há muita gente a falar, isto nunca acaba. E é um orgulho que tenho, saber duas línguas, o português e o espanhol”.

O sol já vai descendo. Os campos em volta vão ganhando tonalidades nostálgicas de dourados e castanhos. Em terras de Olivença, duas línguas, duas faces de uma mesma moeda, vão convivendo, ainda muito agarradas ao passado, mas onde Portugal ainda está bem vivo e menos esquecido do que se pensa, muito além das pedras, das casas e do que é material.

 
A valorização da herança portuguesa


Desde 2008 que existe em Olivença a associação Além Guadiana, cujo objetivo é preservar a identidade cultural de Olivença, portuguesa durante 500 anos e espanhola há 200. A recuperação de tradições de cariz religioso e popular, encontros com escritores portugueses ou o reavivar da toponímia em português são algumas das iniciativas que tem realizado.
Joaquín Fuentes Becerra, 44 anos, é o presidente da associação. Mais do que qualquer pretensão política ou partidária, situação que faz questão de frisar e recusar, a associação a que preside não quer deixar morrer a cultura portuguesa em Olivença. “Nas últimas décadas tem sido feito um bom trabalho no sentido de recuperar o património monumental de Olivença e ao nível da cultura. Mas ainda se pode fazer muito mais, principalmente na cultura intangível. O maior exemplo do processo de desaparecimento da cultura portuguesa em Olivença é a língua”. Para Joaquín Becerra, a língua é a cultura viva, o veículo das tradições, dos sentimentos, da memória das pessoas. “Apesar de se ensinar português nas escolas, não chega a toda a gente. Devia haver uma estratégia de bilinguismo, já que o português não é uma língua estrangeira em Olivença”.

 

 http://da.ambaal.pt/noticias/?id=1847

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