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ALÉM GUADIANA

Associação Além Guadiana (língua e cultura portuguesas em Olivença): Antigo Terreiro de Santo António, 13. E-06100 OLIVENÇA (Badajoz) / alemguadiana@hotmail.com / alemguadiana.com

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Saramago entra no paraíso

AG, 22.06.10

Saramago: A entrada no paraíso

por Dra. Maria da Conceição Brasil

Ontem

Saramago: A entrada no paraíso

Era eu muito jovem, aí com onze ou doze anos de idade, quando iniciei a aventura maravilhosa da leitura. Eram tempos difíceis, assentes no trabalho do chefe de família e na convicção de que a honestidade, a partilha e a compaixão eram a pedra basilar do viver humano. Não havia dinheiro a rodos, cartões de crédito, soluções financeiras a aliciar gente frágil e desprevenida. Não havia festas dia sim, dia sim. Mas havia livros, quase sempre emprestados, a tornar o quotidiano um espaço de sonhos e de magia.

E, porque ler muito convida à experiência de escrever, eu ia escrevendo os meus "romances" em papel comum, com ilustrações feitas por uma amiga de infância.

 

Foi um tempo bom, de vida de qualidade, em que ser feliz era fácil.

 

Mas, porque o homem é curioso e insistente, foi aberta a caixa de Pandora. E a desilusão cobriu a terra e alastrou aos mares e montanhas. E o homem perdeu-se ao correr atrás do dinheiro e demais bens desnecessários, acotovelando amigos e parentes na ânsia louca de ficar farto desses bens e dessas desnecessidades. Tanto quis ter e haver, sem que o mesmo correspondesse a horas de trabalho árduo e honesto, que caiu e ficou desiludido para sempre.

 

Agora, os seus livros falam menos de amor e mais de passados históricos. Têm cada vez mais páginas que podem sugerir o copy e cola do computador. A imaginação perde-se, muitas das vezes, por meandros de vampiros e outras personagens assustadoras e pouco fiáveis. A corrida aos mesmos temas de algum bestseller é uma constante. Escreve-se como quem fabrica artefactos para venda… Perdeu-se o sentido da arte do livro.

 

No entanto, alguns escritores conseguiram fugir a esta tempestade de escrita duvidosa. Um deles foi, sem dúvida, José Saramago.

 

Comecei a lê-lo em tempo de revolta da Igreja contra o herege que se atreveu a falar de Jesus Cristo como um homem que viveu a par e da mesma forma que os homens do seu tempo. Acabei a lê-lo, no dia do seu funeral, com a terrível luta do seu personagem Caim que, ao confrontar-se com Deus após ter assassinado o seu irmão Abel, assume a descrença e a revolta perante Alguém que, tendo nas suas mãos tanto poder sobre os homens, impõe a morte de crianças à conta dos desmandos de seus pais. É ele, Caim, quem impede que Abraão mate o próprio filho quando Deus experimenta a sua fé. Através de vários quadros da Bíblia, Saramago confronta-se com Deus e luta pela vitória de Caim, deixando em aberto uma guerra que não acaba ou não quer acabar.

 

Ao longo destes dias, entre a sua morte e o seu adeus aos muitos Portugueses que acorreram à Câmara Municipal de Lisboa e seguiram o seu funeral até ao alto de S. João, onde foi cremado, muito se disse e se falou sobre o homem, mas, sobretudo sobre o pensamento deste Escritor que foi Prémio Nobel da Literatura.

 

Arrogando-me conhecer um pouco da sua escrita, creio que José Saramago cultivou o discurso da defesa de valores éticos e humanistas, numa sociedade egoísta e sem freios, onde aqueles que têm responsabilidades pouco ou nada fazem para “levantar do chão” os povos menos protegidos. Criticou, e fê-lo até ao fim, os que se dizem “bons” e não mostram os frutos dessa “bondade”. Atacou Deus como quem procura algum paliativo que lhe acalmasse a alma sedenta de dúvidas para as quais nunca conseguiu encontrar as melhores respostas. Foi um homem que procurou incansavelmente, em pleno deserto (confirma ele) espiritual o segredo do fim último do homem e da humanidade.

 

Ao encontrar-se com Deus, estou a vê-lo boquiaberto, com o sorriso traquinas que lhe ficou da infância vivida em comunhão com o avô sábio que tanto amou, a perguntar: -Quando me mandas a Pilar, a mulher que eu amei sem fronteiras, como um rio que jorra água pura e cristalina? Sabes, ela faz-me tanta falta!

 

O senhor terá, nesse momento, abraçado aquele homem que tanto o procurou nos meandros dos livros sagrados e nas bermas dos caminhos de Lanzarote, respondendo: -Um dia destes, um dia destes…

 

http://dn.sapo.pt/inicio/opiniao/jornalismocidadao.aspx?content_id=1599200

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